O silêncio, muitas vezes, incomoda. Ele nos coloca em um estado de agonia, solidão, desespero e, por vezes, de rejeição. No entanto, ao longo deste processo, temos aprendido a conviver com o silêncio, a abrir os ouvidos para o espaço, o tempo, os sentidos — para o silêncio do outro e, acima de tudo, para o silêncio coletivo: do elenco, da companhia, dos ensaios abertos e dos técnicos.
Esse silêncio tem sido fundamental para a compreensão dos fundamentos do processo criativo no qual estou inserido desde julho de 2024, através das oficinas de figurino conduzidas por Ronaldo Machado, Beth Filipecki e Luiz Fernando Lobo. Admito que, a princípio, essa metodologia me causou um grande desconforto. Durante minha longa carreira artística, que começou em 1991 nos grupos de teatro de rua do Rio Grande do Norte, o silêncio nunca teve um papel central. Pelo contrário, as trocas de experiências sempre se deram por meio de diálogos intensos, pela aproximação e pelo conhecimento quase íntimo do outro — parte essencial do processo teatral para mim, tanto como ator quanto como diretor, oficineiro ou estudante de teatro.
Recordo-me de uma experiência particularmente impactante durante meu tempo na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UNIRIO, quando a professora Flora Sussekind apresentou- nos a peça "4'33''" de John Cage. Naquela ocasião, não consegui compreender como aquela performance podia ser considerada uma obra de arte. Nem os argumentos da professora foram suficientes para mudar minha perspectiva. Esse desacordo acabou criando um certo distanciamento entre nós ao longo do curso de Estética e Teoria do Teatro.
Contudo, numa noite silenciosa e escura, por volta das duas da manhã, no porão da minha casa, decidi revisitar a obra de John Cage. Foi nesse momento que comecei a perceber, através do silêncio, a vida ao meu redor. A brisa que passava pelas janelas, o latido de cachorros distantes, as portas rangendo ao longe, o ruído distante de motores e as batidas de funk da vizinhança se transformaram em parte da composição. O silêncio abriu meus sentidos para o ambiente, fazendo com que eu enxergasse o tempo e o espaço sob uma nova ótica. Essa experiência íntima e reveladora, infelizmente, nunca foi compartilhada com a professora Flora.
Da mesma forma, nas oficinas de figurino, o desconforto inicial gerado pelo silêncio transformou-se em algo totalmente inesperado. A metodologia da companhia, bastante distinta das minhas experiências anteriores, revelou-se não apenas uma análise de obra de arte, mas uma vivência teatral. Aqui, a troca ocorre sem palavras, por meio de uma convivência artística, de um diálogo sensorial. Decidi, então, silenciar minhas inquietações, respeitar as regras e tentar absorver o máximo da experiência que fosse útil para mim. O que não me servisse, simplesmente deixaria de lado. Esse processo me levou a uma nova compreensão, como registrado no documento de ensaio do dia 20 de agosto de 2024, no caderno dois, página 56.
Hoje, ao refletir sobre essa jornada, percebo que o que antes via como dificuldade, agora entendo como uma oportunidade. O silêncio, longe de ser uma barreira, tornou-se uma forma de acessar a criação artística de maneira mais profunda. Mergulhar nesse ambiente, libertando-me das amarras do cotidiano, permitiu que a arte criadora surgisse e se desenvolvesse com mais fluidez.
Mesmo não sendo parte integrante do elenco ou da companhia, meus sentidos, corpo e mente foram profundamente estimulados por essa experiência, levando-me a criar na linguagem escrita. Essa sensibilização corporal e mental revelou-se crucial para entender como os atores manipulam seus próprios comportamentos, encontrando novos eixos e estabelecendo um diálogo físico. Os estímulos musculares despertados pelos exercícios levaram os corpos a acessar sentimentos e memórias antes ocultos, o que, por sua vez, contribuiu significativamente para a construção das cenas artísticas nos fragmentos de "O Banquete". Essa imersão não só enriqueceu a fábula, como deu profundidade e consistência argumentativa à peça.
Uma palavra: Estreia
No dia 7 de setembro de 2024, a companhia Ensaio Aberto abriu as portas do Teatro Vianinha para apresentar O Banquete, obra de Mário de Andrade, escritor negro que, em um contexto de racismo estrutural, precisou afirmar-se como branco para que suas criações obtivessem o devido reconhecimento e alcançassem todas as camadas da sociedade brasileira. Com dramaturgia textual de João Batista e dramaturgia cênica de Luiz Fernando Lobo, a peça mergulha em contradições profundas, muitas das quais não têm soluções definitivas.
O enredo da peça de Mário de Andrade nos convida a refletir sobre uma série de questões atemporais e essenciais: o nacionalismo e sua relação com a identidade artística, o papel do artista em uma sociedade polarizada, as elites e o anonimato, os acordos políticos, a censura, a definição de arte e beleza, o racismo e a apropriação cultural. Todos esses tópicos são abordados pela encenação, que, de forma intencional, não entrega respostas fáceis, mas propõe um espaço aberto para discussões. Acredito que a companhia Ensaio Aberto tenha percebido que as questões levantadas por Mário de Andrade são complexas e exigem múltiplos caminhos para serem abordadas, como o subemprego, a desigualdade racial e a forma como a cultura é apropriada ou marginalizada.
Um dos caminhos sugeridos pela peça é a criação de políticas públicas que valorizem a cultura negra e popular, algo explicitado pela dramaturgia cênica quando o personagem Janjão, no fragmento 5, repete em voz alta as palavras "negro" e "branco", apontando a contradição entre o reconhecimento internacional da cultura negra brasileira e a marginalização que ela sofre internamente. A música, a dança, o folclore, a poesia e até a culinária afro-brasileira, como o vatapá, são reverenciados fora do Brasil, mas no país, muitas vezes, ainda são alvo de preconceito e censura. Isso reflete, por exemplo, nos ataques a terreiros de candomblé e umbanda, cujas tradições continuam sendo demonizadas e agredidas, como frequentemente noticiado na mídia.
A peça também sugere que a luta por reconhecimento e igualdade está longe de ser resolvida apenas com políticas públicas; é necessário que o povo tenha consciência política e cultural. Um exemplo forte disso é o personagem Félix, um político que se autodenomina "protetor da arte", mas que admite não compreender sua profundidade. Isso espelha a realidade de figuras públicas e artistas que, quando em posições de poder, acabam se distanciando das necessidades e da transformação que se espera. Em contraste, a personagem Siomara Ponga, apesar de reconhecer a pertinência política e artística de Janjão, prefere manter sua posição privilegiada, evidenciando a conivência de alguns artistas com as estruturas de poder que os favorecem, em detrimento de um alinhamento mais justo e comprometido com causas maiores.
Na dramaturgia cênica, isso é brilhantemente explorado no confronto entre o compositor Janjão e Siomara Ponga, que, ao mesmo tempo em que é aclamada por sua beleza e talento, representa a artista que se acomoda no sistema e se recusa a lutar por mudanças substanciais, preferindo manter- se confortável em seu status. É um exemplo claro de como a peça nos faz refletir sobre as diferentes posturas que o artista pode adotar diante de questões políticas e sociais.
A atuação dos atores é outro ponto de destaque, especialmente a de Leonardo Hinckel, que consegue interpretar dois personagens com grande precisão e nuances. Como garçom e outra figura central, ele se move pelo palco com uma sutileza que marca suas passagens como momentos significativos dentro da narrativa. A interação entre ele e a atriz Rossana, no papel de Siomara Ponga, é particularmente notável. No final do fragmento 3 para o fragmento 4, por exemplo, há uma sequência de movimentos milimétricos, onde Leonardo brinca com a bandeja dos garçons, mostrando uma técnica refinada.
Também vale destacar o trabalho deste ator Leonardo Hinckel, adicionando também as qualidades do ator Eduardo Cardoso, cuja presença em cena é marcante. Embora durante os ensaios seus movimentos corporais parecessem não tão bem definidos ou completos, no palco esses dois atores exibem uma precisão e domínio impressionantes. Eduardo, por exemplo, possui uma postura ereta e esguia, e parece controlar todas as linhas de força do espaço, como um regente que conduz os vetores do palco.
No entanto, a minha dificuldade em compreender totalmente o corpo desses dois atores brancos trouxe uma reflexão interessante. O corpo negro, seja na dança ou no teatro, reflete uma ancestralidade e uma realidade que eu consigo ler facilmente. Mas os corpos brancos trazem uma escrita corporal que me é menos familiar, pois refletem uma outra ancestralidade. Isso me leva a questionar: como os corpos brancos se veem em cena? Que histórias e experiências eles trazem e compartilham, tanto com outros corpos brancos quanto com corpos negros? Essa dinâmica entre ancestralidades e leituras corporais diferentes também é um tema importante na peça.
Uma palavra: Corpos
Essa reflexão foi reforçada durante as aulas de corpo com a professora Valéria Monã. Enquanto os movimentos de atores negros como Gerhein e Miala eram claros e carregados de significado, os movimentos de Leonardo Hinkel. e Eduardo Cardoso não seguiam a mesma lógica ancestral. Mesmo assim, no palco, esses dois atores entregaram performances impecáveis, o que me fez perceber que há diferentes formas de ancestralidade que se manifestam no corpo em cena, seja ela negra ou branca, e que ambas têm muito a dizer, ainda que eu, pessoalmente, não consiga ler com facilidade os códigos corporais de corpos brancos.
A contribuição dos professores de corpo, como Valéria Monã, Paulo Mazzoni, Mariana Pompeu e Luíza Moraes, foi fundamental para o sucesso de "O Banquete" e para a evolução da arte criadora do elenco. Cada um trouxe uma abordagem específica que ajudou a aprimorar a performance dos atores e a enriquecer a dramaturgia da peça.
Valéria Monã: Com sua expertise em dança para os orixás, trouxe uma profundidade cultural e espiritual às performances. Sua orientação permitiu que os movimentos dos atores não fossem
apenas físicos, mas também carregados de significado simbólico e respeitoso em relação às tradições afro- brasileiras. A dança para os orixás adicionou uma camada de autenticidade e reverência à
peça, refletindo a riqueza das culturas de matriz africana.
Paulo Mazzoni: Focado no trabalho de corpo do ator, ajudou a refinar os movimentos dos atores, garantindo que fossem precisos e eficazes na construção de personagens e na narrativa da peça. Sua abordagem técnica permitiu que os atores se movessem com fluidez e naturalidade, o que foi crucial para a criação de cenas que fossem tanto visualmente impressionantes quanto emocionalmente impactantes.
Mariana Pompeu: Também especializada em trabalho de corpo do ator, trouxe um olhar atento para a dinâmica corporal e a expressão dos atores em cena. Sua orientação ajudou a fortalecer a presença física dos atores, permitindo que cada movimento e gesto contribuísse para a construção da narrativa e da atmosfera da peça.
Luíza Moraes Com um enfoque que combinava trabalho de corpo e dança teatro, ajudou a integrar os elementos físicos e expressivos do trabalho do ator com a coreografia e a estética teatral.
Sua contribuição foi crucial para criar uma performance coesa e envolvente, onde o corpo dos atores não apenas representava os personagens, mas também dialogava com o cenário e a
iluminação de maneira harmoniosa.
Esses profissionais desempenharam papéis essenciais na formação do elenco e na criação dos movimentos e do jogo teatral em "O Banquete". Seu trabalho ajudou a elevar a performance a um nível superior, permitindo que o elenco transmitisse com precisão e impacto a mensagem e a estética da peça. A colaboração entre os professores e os atores resultou em uma experiência cênica rica e complexa, refletindo o compromisso e a dedicação de todos os envolvidos.
Uma frase: Teatro épico uma incursão na pequena África.
É importante destacar a forte presença de atores, escritores, artistas negros e indígenas nesta
produção, especialmente entre aqueles envolvidos diretamente no set. Cerca de 38% da equipe era composta por pessoas pretas, pardas ou indígenas. Podemos citar, por exemplo, o dramaturgo João
Batista; os atores Caroline Gerhein, Estevão Miala, Miguel Kalarary, Grégori Eckert, Ju Costa, Caroline Mendes, Mateus Pitanga, Tainá Baldez e Tom Freitas; os técnicos Moisés Monteiro, Valdeir
Baiano e Alex Araújo; a professora de dança Valéria Monã; e o teórico de teatro – ouvinte - Francisco de Nabor, coordenador da ciência do novo público- Fernando Porto.
Acredito que a companhia Ensaio Aberto, ao longo do tempo vem tendo um crescimento no que se refere a consciência racial, principalmente no contexto do teatro brasileiro, que, muitas vezes,
exclui corpos negros, pretos e indígenas. Essa consciência racial já se manifesta, por si só, como uma política pública importante.
É válido ressaltar que Estevão Miala, ator angolano, e Caroline Gerhein, atriz brasileira, destacaram-se poeticamente com seus corpos em cena, sempre abertos ao novo. Ambos trouxeram
uma entrega impressionante, seus movimentos em cena atravessavam o público e pareciam perfeitos, correspondendo aos direcionamentos dados pela professora Valéria e pelo diretor Luiz
Fernando Lobo. Mesmo em cenas silenciosas e sem diálogos, esses dois atores demonstraram uma verdadeira entrega artística.
Por se tratar de uma companhia fortemente influenciada pelos ensinamentos de Bertolt Brecht, o Ensaio Aberto faz um teatro épico, voltado para questões sociais e de luta de classes, com uma
defesa explícita do proletariado e das comunidades operárias. Nesse contexto, a companhia adota um método narrativo em que os atores se distanciam do naturalismo, mesmo que o espetáculo contenha
referências simbólicas, como os pontos de luz, os figurinos e o cenário. A atuação da atriz Tuca Moraes merece destaque, pois, apesar de meu interesse no naturalismo de Constantin Stanislavski, e
de ter ficado atônito pelo seu desempenho, a a triz incorporou a personagem de forma naturalista, fazendo que sua performance não se encaixasse dentro da proposta épica do diretor cênico. Uma das cenas mais memoráveis foi o diálogo entre Siomara Ponga, interpretada por Rossana Rússia, e Sara Light, interpretada por Tuca Moraes. O embate entre as personagens parecia
uma discussão ferrenha, com Sara Light não cedendo às indagações de Siomara Ponga (o que diferia da proposta de trazê-la para junto – verbalizar o texto com mansidão, mas sem tirar a força das frases e palavras principais) – Berliner Ensemble – ( uma técnica que a companhia utiliza de não dá o tempo dialógico da fala, ou o tempo de fala voltado para a subjetividade, e sim para acentuar as palavras, argumentos e pontas de iceberg que vão ficar no ouvido do espectador com o interesse mais de narrar do que trazer o espectador para a cena através de um buraco de fechadura – essa técnica é uma idealização da própria companhia, que após estudos intensos Tuca e Luiz decidiram adotar e nomear com Berliner Ensamble), como sugerido pela direção cênica. Desse modo, a personagem arriscou perder o financiamento para o protegido, deixando de narrar a fábula
para viver o personagem. A atriz Tuca Moraes trouxe uma mudança de rota interessante à cena, jogando com o não conceito de persuasão, o que ousou, valendo-se não sei se propositalmente das regras do naturalismo teatral.
A atuação de Rossana Rússia em "O Banquete" foi realmente notável e desempenhou um papel fundamental na excelência da produção. Sua interpretação de Siomara Ponga foi marcada por
uma combinação de profundidade emocional e técnica refinada que deixou uma impressão duradoura.
A presença de palco de Rossana foi inegavelmente forte. Sua capacidade de transmitir emoções e nuances com eficácia ajudou a construir uma conexão intensa com o público, destacando- se como um dos aspectos mais memoráveis de sua performance. Rossana mergulhou profundamente na complexidade da personagem Siomara Ponga, explorando suas contradições e conflitos internos com grande sensibilidade.
Sua interpretação revelou as camadas mais complexas da personagem, enriquecendo a narrativa e intensificando a carga emocional das cenas. A atriz demonstrou uma integração
harmoniosa com o figurino e o cenário, utilizando-os de forma criativa para aprofundar sua atuação. A interação com os elementos visuais, como a iluminação e o cenário, contribuiu para uma experiência cênica coesa e impactante.
Além das atuações, o espetáculo se destacou pelos "golpes de teatro", especialmente pela cenografia. O teatro, com sua estrutura moderna e excelente acústica, já fascinava o público. A cenografia foi inovadora, com um teto que simulava um jardim de inverno, composto por plantas tropicais reais, distribuídas pelo extracampo e acima do palco. A iluminação também foi impecável, em perfeita sintonia com a trilha sonora, quase como se fossem uma só entidade,
ritmadas e precisas e cheios de momentos pregnantes, como a aparição da mesa, a formação de quadros vivos, a figura do Véu da Noiva pelas atrizes Karolyna Mendes e Mariana Pompeu e a
inesperada passagem de Zé Pelintra do ator Mateus Pitanga, trouxeram um nível de teatralidade e misticismo que elevou o espetáculo a uma experiência única e inesquecível.
Continuando a reflexão sobre o espetáculo, há ainda muito o que se destacar. Um ponto que merece menção especial é a maneira como o corpo se coloca em cena como um elemento narrativo
por si só. A presença física dos atores, especialmente os que possuem origens africanas e indígenas, carrega um simbolismo profundo e reforça o caráter ancestral de suas atuações. Em peças como O
Banquete, onde questões de identidade, raça e classe são colocadas no centro da narrativa, o corpo se torna um veículo essencial de comunicação, indo além das palavras e dos diálogos explícitos.
É perceptível que os corpos negros em cena são facilmente lidos e compreendidos por aqueles que compartilham dessas mesmas ancestralidades, como os que observam através de lentes da vivência e da experiência afro-brasileira. Esse entendimento imediato se dá porque o corpo negro, historicamente marginalizado, carrega em si uma carga de luta, resistência e cultura que se manifesta tanto em movimentos sutis quanto em grandes performances. Esses corpos evocam memórias e histórias que transcendem o texto escrito, conectando o público a um passado coletivo de opressão e
ao mesmo tempo de resiliência.
Por outro lado, os corpos brancos no palco oferecem um contraste que, para muitos, pode ser de difícil leitura. Eles trazem consigo uma outra forma de expressão, uma ancestralidade diferente,
que não se conecta da mesma maneira com as vivências de corpos negros e indígenas. Esse contraste entre as diferentes corporalidades em cena abre espaço para uma discussão ainda mais rica sobre como o teatro pode ser um espaço de encontro entre múltiplas experiências e histórias de vida.
A pluralidade de corpos e narrativas no palco de O Banquete reforça a ideia de que o teatro é uma arte coletiva, onde todos os envolvidos, independentemente de suas origens, contribuem para
a criação de uma obra que é maior do que a soma de suas partes.
É essencial destacar as performances de Miguel Kalahary (corpo negro) e Thaíse Oliveira (corpo branco), dois atores que passaram por notáveis transformações ao longo do processo criativo. Miguel, desde os primeiros ensaios, expressou suas inquietações e questionamentos acerca das metodologias e técnicas de interpretação e encenação adotadas pelo coletivo. Essas reflexões não apenas enriqueceram as discussões internas, mas também proporcionaram a ele um desenvolvimento significativo como ator, fortalecendo sua "musculatura" criativa e técnica.
Paralelamente, Thaíse Oliveira também teve uma jornada de crescimento marcante. Ao longo do processo, sua atuação evoluiu de maneira orgânica, levando-a a assumir o papel de uma "atriz criadora", alguém que não apenas interpreta, mas também molda e contribui ativamente para a construção de sua personagem. Essa transformação se reflete de maneira visível em sua presença cênica, onde seu corpo em cena passa a expressar, de forma clara e impactante, o resultado de um trabalho contínuo de aperfeiçoamento e imersão artística.
É fundamental observar que os descendentes indígenas têm se destacado de forma crescente no processo de ensaios. Tainá Baldez e Tom Freitas têm se dedicado intensamente às aulas de corpo, especialmente sob a orientação da professora Valéria Monã. Eles têm desenvolvido movimentos com acabamentos refinados, o que se reflete positivamente em suas atuações na peça O Banquete.
Essa evolução não só aprimora a qualidade de suas performances, mas também agrega valor e dinamismo aos seus papéis como atores e atrizes, principalmente em cenas que demandam movimentos de dança, como nos fragmentos em que os atores dançam para os orixás.
Além disso, seus movimentos são bem definidos, com trajetórias precisas e uma aplicação perfeita das regras dos vetores e linhas de força. Eles têm conseguido posicionar seus corpos de
forma a valorizar a cena, demonstrando um domínio técnico que enriquece ainda mais suas atuações.
É crucial reconhecer que a atuação de Grégori Eckert no papel do Pastor Fido em O Banquete, de Mário de Andrade, apresentada pela Companhia Ensaio Aberto, é um reflexo brilhante da sua dedicação e esforço contínuo. Sua performance, marcada pela perfeição na integração entre movimento e interpretação, é resultado de um intenso trabalho em sala de estudo, aulas de corpo e ensaios de palco. Gregori demonstrou uma atenção constante às direções e sugestões de cena, mostrando-se sempre aberto aos conselhos e aos argumentos discutidos durante o processo criativo.
Sua disposição para incorporar feedback e colaborar com o processo criativo do coletivo revela um profundo compromisso tanto com o desenvolvimento do grupo quanto com seu próprio crescimento artístico. A maneira como Grégori se envolveu no processo, absorvendo e aplicando as orientações recebidas, evidenciou não apenas sua habilidade como ator, mas também seu
investimento pessoal no sucesso da peça e no alcance de uma expressão artística autêntica e envolvente.
O impacto visual da entrada das atrizes Karolyna Mendes e Mariana Pompeu, em contraste com o véu da noiva, é um aspecto significativo que merece uma análise mais profunda. A presença de duas mulheres, uma branca e uma preta, pode ser interpretada como uma alusão ao casamento por conveniência e à objetificação do corpo feminino negro. Esse contraste visual e simbólico sugere uma crítica à maneira como o corpo feminino negro é frequentemente utilizado e explorado de maneira indiscriminada, incluindo as conotações de violência sexual e desumanização.
A escolha de representar essas temáticas através da dualidade das atrizes e do véu da noiva não só enriquece a narrativa visual, mas também proporciona uma reflexão sobre questões de raça, gênero e poder. O véu, tradicionalmente associado ao casamento e à pureza, quando colocado em contraste com a diversidade das atrizes, sugere uma crítica à idealização e às expectativas impostas sobre o corpo feminino, especialmente o corpo negro, revelando as complexas camadas de opressão e objetificação presentes na sociedade.
Voltando à encenação, o trabalho da companhia, ao se apoiar nos ensinamentos de Brecht, permite que o público se distancie das emoções imediatas para refletir sobre as questões políticas e sociais levantadas. Esse distanciamento é o que permite que temas como a luta de classes, a censura, a apropriação cultural e o racismo sejam explorados com profundidade. O uso do distanciamento brechtiano não é apenas uma técnica teatral, mas também uma ferramenta política poderosa, que força o espectador a se engajar criticamente com o que está sendo apresentado, em vez de apenas se emocionar passivamente.
Outro ponto que merece ser ressaltado é a maneira como a peça aborda a apropriação cultural e a forma como as culturas afro-brasileiras são, muitas vezes, vistas de maneira contraditória. Por um
lado, elas são exaltadas internacionalmente, como o samba, o candomblé e a capoeira, mas, por outro, ainda sofrem estigmatização e demonização dentro do próprio Brasil. Essa contradição é uma das
feridas abertas que O Banquete expõe de forma contundente.
O solo de Caroline Gerhein, evocando Exu, mencionado anteriormente, é um exemplo perfeito de como a peça lida com essas questões de forma sensível e impactante, trazendo à tona a beleza e a complexidade das tradições de matriz africana.
Além disso, o cenário, a iluminação e a trilha sonora desempenharam papéis fundamentais na construção do espetáculo. O uso de plantas tropicais no cenário foi uma escolha simbólica importante, remetendo à riqueza natural e cultural do Brasil, mas também às questões de colonialismo e exploração. A iluminação, sempre precisa, contribuiu para criar momentos de grande intensidade dramática, enquanto a trilha sonora, ritmada e em sintonia com os movimentos dos atores, serviu como uma extensão das emoções e dos temas explorados. O Banquete é uma obra de arte complexa e multifacetada, que aborda questões fundamentais para a sociedade contemporânea. Ela nos lembra que o teatro é um espaço de reflexão e transformação, onde o corpo, a palavra e o cenário se unem para criar algo que desafia o público a questionar suas próprias visões de mundo. A pluralidade de corpos e vozes em cena é um reflexo de um Brasil diverso, mas ainda profundamente desigual, onde a luta por reconhecimento e justiça continua sendo uma questão urgente e necessária.
uma palavra: Silhueta
A palavra silhueta carrega, de fato, múltiplas conotações dependendo do contexto. Em seu sentido mais direto, refere-se ao contorno ou perfil de um objeto ou figura delineado pela luz ou sombra. Contudo, no teatro, sua aplicação é muito mais rica e multifacetada. No contexto do espetáculo O Banquete, da Companhia Ensaio Aberto, a silhueta desempenha um papel crucial na construção da dramaturgia visual. A interação entre os corpos dos atores, os figurinos e a iluminação não apenas define os contornos dos personagens, mas também contribui para uma narrativa visual mais complexa. As silhuetas criadas por essas interações são, de fato,
personagens por si mesmas, moldando e enriquecendo a cena de maneiras profundas.
Um exemplo marcante disso é a cena do culto aos Orixás. Nesta sequência, as silhuetas projetadas pelas luzes transcendiam o texto e a coreografia, criando uma narrativa paralela que explorava temas de espiritualidade e tradição. A luz, neste caso, não é meramente técnica; ela se transforma em um elemento narrativo, projetando sombras e contornos que adicionam camadas de significado à cena. Essas silhuetas oferecem uma nova dimensão de interpretação, revelando aspectos sutis e profundos da cultura afro-brasileira e da espiritualidade.
Assim, a silhueta no teatro não é apenas uma questão de forma ou contorno, mas sim uma ferramenta essencial para a criação de atmosferas e narrativas visuais. Ela se integra de forma dinâmica com a luz, o cenário e os movimentos dos atores, contribuindo para uma dramaturgia visual que vai além do texto e do discurso explícito.
Certamente, A utilização de figurinos, iluminação e cenografia para contar uma história vai além de uma simples combinação estética; é uma prática fundamental que molda a experiência teatral. No caso da peça O Banquete, a colaboração entre a equipe de figurinos, cenário e a iluminação foi essencial para criar uma narrativa visual coesa e significativa.
O trabalho do cenógrafo J.C. Serroni e de seus assistentes merece uma menção especial. A habilidade de Serroni em transformar o cenário em uma narrativa visual complexa e enriquecedora foi fundamental para o sucesso da produção. O cenário não apenas ressaltou os elementos físicos do palco, mas também desempenhou um papel crucial na definição do tom, do ambiente e da atmosfera da peça. Cada escolha de objeto cenográfico parecia meticulosamente planejada, refletindo uma conexão profunda com a narrativa e os temas abordados.
As escolhas cênicas, desde a disposição dos elementos até a seleção de cores e texturas, foram realizadas com precisão, realçando de forma sutil, mas poderosa, as emoções e as nuances da história.
O cenário se tornou uma extensão da narrativa, contribuindo significativamente para a imersão do público e para a intensificação dos momentos dramáticos. A visão criativa de Serroni e de sua equipe não apenas emoldurou a peça, mas também a elevou, transformando o espaço em um personagem da trama.
De outro modo, de acordo com os teóricos do teatro, a luz possui uma capacidade única de revelar e ocultar, orientar o olhar do espectador e adicionar camadas de significado à cena. César de
Ramires, junto com seus talentosos auxiliares Marcelo Bernardo, Kênia Pimentel e Pedro Passani, utilizou magistralmente essas qualidades da iluminação para complementar e intensificar a narrativa do espetáculo. A iluminação foi projetada para interagir de forma harmoniosa com os figurinos, criando silhuetas e sombras que conferiam uma profundidade adicional e uma complexidade visual
à peça.
O trabalho de Ramires e sua equipe foi fundamental na criação de atmosferas dinâmicas e na evitação de efeitos visuais previsíveis. Eles exploraram as nuances da luz para destacar aspectos específicos da cena, direcionar a atenção do público e acentuar momentos dramáticos. Cada escolha de iluminação – desde a intensidade e a temperatura da luz até a forma como ela interagia com o ambiente e os personagens – foi feita com precisão para refletir e amplificar a essência da narrativa. Além disso, a iluminação contribuiu para o desenvolvimento emocional da peça, proporcionando uma experiência imersiva que ressoou profundamente com o público. Ao
manipular a luz de forma tão habilidosa, César de Ramires e sua equipe não apenas emolduraram a ação no palco, mas também enriqueceram a experiência sensorial e interpretativa do espetáculo.
Reconhecer o esforço desenvolvidos pelos figurinistas Renaldo Machado e Beth Filipecki, nessa tarefa se torna crucial. Figurinos bem elaborados não apenas definem o estilo visual de uma peça, mas também contribuem para a caracterização dos personagens e para a atmosfera geral do espetáculo. A harmonia entre figurinos e iluminação é crucial para garantir que a história seja contada de maneira visualmente rica e emocionalmente ressonante.
O sonográfico realizado pelo sonoplasta Daniel Ventuani foi notavelmente preciso e contribuiu de forma significativa para a narrativa da peça. A combinação de elementos sonoros com os vetores, trajetórias e linhas de força do espaço cênico trouxe uma nova dimensão ao espetáculo, infundindo-o com dinamismo e originalidade. A sonoplastia de Ventuani não apenas complementou as cenas, mas também as vestiu de maneira singular, enriquecendo a experiência do público e reforçando a atmosfera e os temas da produção.
Uma Palavra: Dança
A palavra "dança" pode ser um ponto de partida fascinante para explorar a riqueza e a profundidade das obras que representam a cultura brasileira e africana no teatro. A referência ao Maracatu de Chico Rei e à sua interpretação no espetáculo O Banquete destaca a importância de reconhecer e celebrar essas contribuições culturais. O Maracatu de Chico Rei, uma colaboração entre Francisco Mignone e Mário de Andrade, pode ser uma obra menos conhecida, mas sua inclusão e interpretação no espetáculo mostram a relevância de trazer à tona e valorizar a rica herança cultural brasileira, especialmente no contexto das culturas de matrizes africanas. A escolha de Caroline Gerhein, para interpretar essa obra, com
sua presença cênica e dança, é um testemunho do impacto profundo que a arte pode ter ao refletir e afirmar a identidade e a força das comunidades negras.
A atuação da atriz e bailarina, aliada à colaboração entre figurinos, iluminação e cenário, cria um espetáculo que não só respeita e exalta a cultura negra, mas também desafia a falta de
reconhecimento e a valorização de obras genuinamente brasileiras. O cuidado com a representação das culturas africanas e a sensibilidade para a ancestralidade são evidentes no trabalho do diretor e de toda a equipe técnica, refletindo um compromisso com a autenticidade e o respeito.
Essa abordagem é um exemplo brilhante de como o teatro pode servir como um espaço de afirmação e celebração cultural, destacando a importância de dar visibilidade a histórias e expressões artísticas que muitas vezes são marginalizadas. A integração da dança, com seu poder de comunicar e conectar, adiciona uma camada essencial à narrativa, transformando o espetáculo em uma poderosa afirmação de identidade e cultura.
Portanto, a palavra "dança" aqui não é apenas uma referência ao movimento físico, mas também à dinâmica cultural e emocional que enriquece o espetáculo, permitindo que o público experimente e reflita sobre a riqueza das tradições e histórias que ele representa.
A importância do trabalho coletivo no teatro não pode ser subestimada. Cada membro da equipe contribui para a realização da visão artística de maneira única, e é essa colaboração que muitas vezes faz a diferença entre uma performance memorável e uma que não atinge seu potencial.
No caso do espetáculo "O Banquete" da Companhia Ensaio Aberto, o esforço conjunto dos atores: Daniel de Mello, Tábata Porto, Ju Costa e Felipe de Gois, é notável. Eles não apenas deram vida a suas atuações, mas também ajudaram a construir um contexto dramático que enriquece a obra e a torna relevante para o público. Cada ator trouxe seu próprio estilo e interpretação, o que ajudou a criar uma tapeçaria rica e multifacetada de performances que desafiam e encantam.
A colaboração entre todos os envolvidos – atores, diretores, técnicos e designers, e aqui cito os assistentes de direção Octavio Vargas e Ana Luiza Rehder, os produtores de set: Camille Aboud e
Álvaro Antônio, e a coordenadora de Produção Dani Carvalho – que demonstram que o teatro é verdadeiramente uma arte coletiva. Cada contribuição, por menor que possa parecer, desempenha um papel essencial na criação de uma produção coesa e impactante. O resultado é uma obra que não só entretêm, mas também provoca reflexão e diálogo, convidando o público a considerar novas perspectivas e a se engajar com questões sociais e culturais importantes.
Assim, o sucesso de "O Banquete" não é apenas um testemunho do talento individual, mas também da força do trabalho coletivo. Cada membro da equipe contribuiu para um espetáculo que é tanto uma obra de arte quanto um catalisador para a reflexão e a discussão.
A proposta audaciosa de Luiz Fernando Lobo trouxe uma camada adicional de complexidade à dramaturgia cênica da Companhia Ensaio Aberto, exemplificando uma abordagem inovadora e rica em nuances. A decisão de posicionar dois Félix de Cima, um no palco e outro no extra campo, não apenas desafiou a percepção convencional, mas também aprofundou a experiência
teatral ao criar uma dinâmica de confusão e reflexão para o público. O compromisso da companhia com o teatro épico de Brecht, centrado nas questões sociais e na luta de classes, permaneceu
evidente, mesmo diante das adaptações simbólicas no cenário e figurinos.
A trama ganha profundidade ao explorar a interseção entre arte e política, especialmente por meio da figura central do político Félix de Cima, interpretado pelos atores Gilberto Miranda e Emerson Manguete. Gilberto, o primeiro a assumir o papel, construiu uma carreira sólida no cenário teatral brasileiro e integra o elenco permanente da companhia há 24 anos, trazendo consigo uma vasta
experiência que enriquece a interpretação do personagem.
Por outro lado, Emerson Manguete, foi incorporado ao elenco através de um processo seletivo, impulsionado por uma série de desafios organizacionais enfrentados pela companhia. Problemas
internos e externos exigiram que a direção adotasse medidas preventivas, e a escolha de Emerson surgiu como parte dessa estratégia de precaução frente às incertezas do contexto atual. Sua chegada, além de garantir uma continuidade segura nas produções, trouxe um frescor interpretativo, reafirmando a capacidade da companhia de se adaptar às adversidades sem perder sua essência
artística e política.
Por tudo isso, O Banquete se revela como uma obra teatral de profundo impacto, oferecendo um espaço de reflexão crítica sobre a realidade social contemporânea. A complexidade e a diversidade presentes em cena não apenas ampliam a compreensão sobre a desigualdade e as questões de reconhecimento, mas também destacam o teatro como uma ferramenta poderosa para a transformação social. Ao unir corpo, palavra, cenário, figurino e iluminação a peça desafia o público a reavaliar suas percepções e a engajar-se ativamente na busca por justiça e equidade. Assim, O
Banquete não é apenas uma experiência estética, mas um convite à reflexão e à ação diante das questões que moldam a sociedade.
Por Francisco de Nabor.