Eliana mora há um mês na nova casa em Sumaré — Foto: Marcello Carvalho/G1
22 de JANEIRO 2019 - As paredes eram brancas e a janela só tinha vista para a copa de uma árvore e pedaços de arranha-céus da maior cidade do Brasil. O cenário foi praticamente o único que Eliana Zagui conviveu durante 43 dos 44 anos de vida. Diagnosticada com poliomielite quando tinha um ano, ela passou a morar em um quarto de hospital. A rotina fria que foi imutável por quatro décadas finalmente mudou. Há um mês, ela vive na casa de um amigo em Sumaré (SP) e substituiu o branco por cores, a copa da árvore por plantas no quintal e o sonho de viver fora da unidade médica pela liberdade de fazer planos: viajar, dar palestras e ajudar as pessoas.
Eliana descobriu que tinha pólio em pleno surto da doença, na década de 1970. O desconhecimento dos médicos à época, que disseram que crianças com dor de garganta não poderiam tomar vacina, fez o quadro se agravar. Ela perdeu os movimentos do pescoço para baixo e passou a respirar só com a ajuda de aparelhos. Sem poder pagar o tratamento e todos os equipamentos, a família optou, em 1976, por deixá-la morando no Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) por tempo indeterminado.
O planejamento de viver fora do hospital começou muito antes dela conseguir deixar a unidade, no dia 22 de dezembro do ano passado. Além da determinação e da garra para nunca deixar a doença derrotá-la, o fator determinante para a realização do sonho foi o cruzamento dos destinos dela e do cabeleireiro Lucas Negrini. Os dois se conheceram pela internet em 2002 e a amizade fez o jovem de 35 anos mudar todo o rumo da vida para “adotar” Eliana em casa.
Eliana aprendeu a pintar com a boca no hospital — Foto: Marcello Carvalho/G1
O mês em liberdade trouxe um novo ritmo à rotina da paciente. Na cama adaptada em um dos quartos da casa de Lucas, ela mistura novos e velhos hábitos. O gosto pelos livros e pela pintura, paixões adquiridas nos anos de Hospital das Clínicas, se une às descobertas da vida fora, como a relação com os cachorros, a diversão com filmes e músicas, e o contato com a natureza em passeios que faz constantemente. O preferido? Uma represa próximo à casa da nova família.
“Eu ainda estou me ajeitando na nova rotina, mas a principal diferença é poder sair. Ter a liberdade de ver a luz do sol quando eu quiser, ver a natureza, que eu gosto muito. Aqui, até o meu bom dia é diferente. Lá no hospital tinha dia que eu nem respondia bom dia. Aqui eu estou feliz, a gente sai, vai em um barzinho aqui perto, já fui em churrasco, mas o que eu adoro mesmo é a represa, me divirto”, contou Eliana.
E agora?
Os 43 anos alternando a esperança para deixar de morar no hospital, e o empenho para lidar com a rotina pesada do monitoramento constante dos médicos, não reduziram os objetivos de Eliana. Entre os planos muito bem definidos, o principal deles é andar de avião para poder viajar e conhecer o Sul do Brasil e Portugal, os lugares que mais sonha em visitar.
Os projetos profissionais, assim como a rotina, também misturam passado e presente. O passatempo que aprendeu no hospital virou profissão. Atualmente, ela pinta quadros e pretende usar as obras para ganhar dinheiro. Junto com a pintura, pretende entrar no ramo de palestras para ajudar pessoas que também perderam os movimentos do corpo por conta da poliomielite ou adquiram outro problema de mobilidade.
“Se você não sonhar, o que você é? As pessoas já nascem com o não pra tudo, então não pode perder a fé e perseverar nos objetivos. Eu demorei 43 anos para realizar meus planos. O que não pode é colocar mais empecilho do que já tem. As pessoas têm uma cultura de vitimismo. Eu também tenho meus dias de vitimismo, mas isso não pode virar rotina”, disse.
Lucas conheceu Eliana em 2002 e levou ela para morar com
ele — Foto: Marcello Carvalho/G1
‘O tetraplégico era eu’
A ajuda que Lucas deu a Eliana para tirá-la do hospital não foi a primeira demonstração de carinho e amizade entre os dois. Quando se conheceram, em 2002, o jovem vivia uma situação bem distinta da atual. Prestes a ser despejado de onde morava em São Paulo, ele teve depressão e buscou ajuda em um grupo da Igreja Presbiteriana, onde ela trabalhava como voluntária e auxiliava as pessoas por meio de chat na internet – ela aprendeu a pintar e digitar com a boca. A empatia foi imediata.
“Eu disse os problemas que eu tinha e deixei claro para ela que estava pensando em fazer uma besteira. Então ela começou a me falar que eu não podia fazer isso, que tinha pessoas com problemas muito piores que o meu. Quando ela me disse para ir ao hospital visitá-la e eu vi que ela estava sem se mexer naquela cama, eu vi que ela estava falando dela mesma e que eu que estava tetraplégico nos meus pensamentos. Ela foi o remédio para curar minha depressão”, revelou Lucas.
Quando morava no hospital, Eliana chegou a receber a visita
de Ayrton Senna — Foto: Arquivo pessoal
Eliana conta que o objetivo de deixar o hospital sempre existiu. Durante o período na unidade médica, que rendeu até um livro lançado há alguns anos, ela saia para dar alguns passeios, mas sempre tinha que voltar dias depois. A frustração de não ter a visita dos pais constantemente, – a mãe dela morreu há cinco anos e o pai teve dificuldades para aceitar a condição da tetraplegia – além sonho de ter um lar, comoveram Lucas, que também precisava da amiga para não recair à depressão.
A mudança
De volta a Sumaré e depois de adquirir uma casa, o cabeleireiro começou o processo para trazer Eliana para perto. Para conseguir financiar os custos de duas enfermeiras, além dos gastos com medicações e as despesas da residência, ele conta com a ajuda de empresários e uma vaquinha na internet.
Já o aparelho que funciona como um pulmão artificial para ajudar na respiração é do HC e foi junto com a paciente para a nova residência, que atualmente, além de Eliana e do dono da casa, também moram Cynthia, uma jovem que veio da Bahia para conseguir um emprego, e Júnior, amigo de Lucas. “Não acho que seja uma república, tem mais cara de um instituto para ajudar pessoas”, afirmou o cabeleireiro.
Depois de algumas visitas curtas à residência para adaptação e de uma sensível melhora no estado de saúde, Eliana recebeu alta e foi em definitivo para a nova casa. “Não tinha ninguém que me levasse para casa. Minha família não tem condição. O Lucas mudou a vida dele para conseguir me ajudar. Por incrível que pareça, ainda existem pessoas boas no mundo. Hoje em dia as pessoas não sabem ajudar o outro. Ele é um grande amigo”, explicou.
Mulher viveu no hospital desde 1 ano e 9 meses — Foto: Arquivo pessoal
Ajuda a novos e velhos amigos
Apesar de ter conquistado o sonho de morar em uma casa, Eliana ainda não está 100% realizada. O que falta? Tirar do hospital o amigo e companheiro de quarto por quatro décadas, Paulo Henrique Machado, e levar para a mesma casa em Sumaré. Os dois foram os únicos que sobraram no HC das crianças que foram internadas com poliomielite na década de 1970. No entanto, segundo ela, ele ainda tem receio de deixar o local em definitivo.
Outra pendência é inaugurar o Instituto Eliana Zagui, idealizado por ela e Lucas para ajudar vítimas da doença. A ideia é transformar a casa também em sede da organização, mas o local foi vetado pela Prefeitura. Com a negação, eles já conseguiram outro imóvel e estão em fase de finalização das aprovações e da captação de recursos para colocar o plano em prática.
“O meu tempo no hospital foi de grande aprendizado e grande sofrimento, acho que tenho muitas coisas a passar para as pessoas. Mas realmente falta o Paulo aqui, eu sinto muita falta dele. Cada criança que ia embora do hospital ou morria, eu chorava, só sobrou eu e o Paulo, ele é muito importante para mim”, relembrou.
Paulo e Eliana no quarto de hospital que dividiram por quatro décadas — Foto: Arquivo pessoal
Por Marcello Carvalho e Jonatan Morel, G1 Campinas e Região e EPTV