'Mudou minha vida', diz aluno que aprendeu a ler em projeto que usa método Paulo Freire para alfabetizar pessoas em Natal


Aula do projeto Aprendendo Mais — Foto: Cedida

14 de ABRIL 2020 - Mais de meio século depois da experiência de ensino da leitura a adultos coordenada pelo educador Paulo Freire em Angicos, no ano de 1963, o método do pedagogo pernambucano segue sendo utilizado para alfabetizar pessoas no Rio Grande do Norte. É o que propõe o Aprendendo Mais, programa voltado para a diminuição dos índices de analfabetismo em Natal.

As aulas das primeiras turmas do projeto começaram em outubro do ano passado e estavam previstas para terminar em abril de 2020, mas o cronograma foi suspenso por causa da pandemia global do novo coronavírus (Covid-19). Mesmo antes do término do curso, o Aprendendo Mais já apresenta resultados consideráveis. Alguns alfabetizandos já demonstram evolução na frente dos livros e sonham em entrar no mercado de trabalho com as novas aptidões.

É o caso de José Porfírio da Silva Júnior, de 26 anos, que aprendeu a ler em apenas dois meses e impressionou os professores alfabetizadores do Aprendendo Mais, que utilizam o método Paulo Freire para o ensino da leitura e escrita, aliado à compreensão do mundo baseado nas experiências de vida de cada pessoa.

"Eu não sabia o que era um 'a' e em pouco tempo já tava conseguindo ler algumas palavras. Era muito ruim, eu era praticamente um cego porque olhava para os cantos e não entendia nada. Na parada de ônibus tinha que ficar perguntando ao povo porque eu não sabia ler. Aprender a ler foi uma alegria muito grande", conta José Porfírio que mora há um ano em Natal.

Porfírio teve de abandonar a escola aos 12 anos para trabalhar e ajudar na renda da família em Pernambuco, estado onde nasceu e cresceu. Lá, ele trabalhou como vendedor ambulante e auxiliar de produção em uma fábrica de jeans até chegar à capital potiguar em busca de uma melhoria de vida. Em Natal, o jovem conheceu a vendedora autônoma Antônia Andreia de Almeida, com quem divide casa há 1 ano no bairro do Planalto, Zona Leste da cidade.

Porfírio apresenta trabalho em uma das aulas no Leningrado 
ao lado da companheira Andreia (blusa cinza) — Foto: Cedida

Andreia foi a grande incentivadora pela alfabetização do companheiro. Ela foi a ponte entre o homem de 26 anos, que atualmente faz “bicos” de pedreiro, e o programa Aprendendo Mais. “Ela me ajuda demais e me acompanha nas aulas. Gosto muito de estudar em casa também, tem dia que eu vou até meia-noite lendo. No começo era mais difícil, mas agora já estou conseguindo ler e escrever melhor. Isso vai me ajudar a conseguir um emprego”, conta José.

E sobre o futuro, é assertivo: “A ideia é ficar aqui em Natal e construir minha vida ao lado da minha companheira. Hoje é complicado porque não tenho emprego fixo. As vezes eu vendia uns picolés na praia para complementar a renda. Quero terminar as aulas, fazer uns cursos e voltar a trabalhar na indústria têxtil que é uma área que eu gosto”.

“Aqui, Paulo Freire está mais vivo do que nunca”


Professor Marcel ministra aula do Aprendendo Mais, no 
Planalto — Foto: Cedida

Admirador dos métodos de “cidadanização” desenvolvidos pelo pedagogo Paulo Freire, o professor Marcel Bevenuto foi escalado como um dos alfabetizadores do projeto promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Natal (SME) em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Marcel já deu aulas para alunos dos ensinos fundamental e médio, mas a oportunidade de aplicar a metodologia freiriana vem sendo encarada como uma experiência única na carreira do docente. “É muito prazeroso poder dar voz a essas pessoas e o melhor de tudo: a gente não está formando decodificadores de palavras apenas, mas sim pessoas com a capacidade de pensar, opinar e formar um senso crítico com atuação direta na sociedade”, explica.

A turma comandada por Marcel Bevenuto tem 24 estudantes e - antes da paralisação por causa da Covid-19 - funcionava em uma associação de moradores, no bairro Planalto. Os alfabetizandos são tratados de forma individualizada e recebem um plano de estudo, que é elaborado conforme a rotina, idade e nível de conhecimento de cada um. Nas aulas, os professores utilizam um material desenvolvido especificamente para o ensino de jovens e adultos.

“Temos que entender que cada um tem sua especificidade. Por exemplo, nos períodos das aulas alguns evangélicos precisavam faltar aula para ir aos cultos. Outros são pedreiros, churrasqueiros ou trabalhavam o dia inteiro e por vezes eram vencidos pelo cansaço. Isso tudo era conversado para não prejudicar ninguém. Por isso que esse é um projeto tão encantador porque é preciso muita força de vontade dos participantes”, acrescenta Marcel.

Ainda segundo o alfabetizador, é preciso ainda enfrentar o preconceito. “Muitas vezes, eles nem se reconhecem como analfabetos e têm vergonha disso. Por isso, é preciso dar voz e carinho para entender a realidade de cada um, assim como fez Paulo Freire lá em Angicos na década de 1960. Só assim vamos formar cidadãos. Não adianta ser mais um, tem que participar da sociedade”, explica Bevenuto.

RN reencontra Paulo Freire 57 anos após primeira turma


Professora Maria Eneide, de 63 anos, foi uma das alunas de 
Paulo Freire na década de 1960 — Foto: Cedida

Em 1963, Freire levou uma experiência inédita de educação popular para a cidade de Angicos, no Oeste do Rio Grande do Norte, que à época tinha cerca de 9,5 mil habitantes. O educador tinha uma meta ousada: alfabetizar adultos em 40 horas. A primeira turma teve 380 participantes e cerca de 300 concluíram o curso, que começou em 28 de janeiro e terminou no dia 2 de abril.

Embora não estivesse oficialmente matriculada, Maria Eneide Araújo foi uma das alunas do laboratório que ficou conhecido como “As 40 horas de Angicos”. Ela acompanhava os pais e também foi alfabetizada sob a supervisão de Paulo Freire. Na época, Eneide tinha 6 anos e aos 17 começou a dar aulas, profissão que exerceu por duas décadas até se aposentar como professora do Estado.

“Foi durante o curso em 1963 que eu quis ser professora para alfabetizar outras pessoas com a metodologia freiriana. Eu aprendi antes mesmo dos adultos, sentada no colo do meu pai. Quando o curso terminou, o então presidente João Goulart veio a Angicos para constatar a eficiência das aulas e eu li uma carta para ele e provei que sabia ler. Ganhei até presente”, lembra.

Eneide é inspiração para a turma que está prevista para se formar em 2020. De longe, a professora torce pelos novos formandos. “Assim como foi importante para a minha vida, será para a deles também. Não sabia desse programa, mas agora ficarei acompanhando. Tenho certeza de que a tecnologia também poderá ser utilizada para aprimorar as aulas. É importante que o estudo seja democrático e que não falte amor”, diz a professora angicana.

Método Paulo Freire


Método utilizava contexto social para introduzir a leitura — 
Foto: Reprodução

Paulo Freire desenvolveu um método de alfabetização baseado nas experiências de vida das pessoas. Em vez de buscar a alfabetização por meio de cartilhas e ensinar, por exemplo, “o boi baba” e “vovó viu a uva”, ele trabalhava as chamadas “palavras geradoras” a partir da realidade do cidadão. Por exemplo, um trabalhador de fábrica podia aprender “tijolo”, “cimento”, enquanto um agricultor aprenderia palavras como “cana”, “enxada”, “terra” e “colheita”. A construção de novos vocábulos é baseada a partir da decodificação fonética dessas palavras.

A vinda de Paulo Freire ao Rio Grande do Norte começou a ser articulada em 1962 pelo então governador Aluízio Alves - que nasceu em Angicos - e foi intermediada pelo secretário de educação Calazans Fernandes. A ideia era expandir o programa de Paulo Freire por todo estado para diminuir os índices de analfabetismo, mas o educador foi exilado em 1964 após o golpe militar sob a acusação de subversão.



Paulo Freire morreu aos 75 anos em 1997. — Foto: 
Arquivo/Instituto Paulo Freire

“Um carro passou na cidade anunciando um curso de leitura, escrita e politização em 40 horas. Os moradores ficaram um pouco receosos, mas universitários fizeram visitas porta a porta e convocaram para os chamados 'círculos de cultura'. Angicos tinha muito agricultor, pedreiro e dona de casa, então foi feito um levantamento linguístico das palavras do cotidiano dessas pessoas, o que possibilitou a alfabetização de 300 delas”, detalha a historiadora, professora e pesquisadora Emília Cristina.

Nascido no Recife, Freire ganhou 41 títulos de doutor honoris causa de universidades como Harvard, Cambridge e Oxford. Ele morreu em maio de 1997, e em 2012 foi declarado patrono da educação brasileira.

Aprendendo Mais


Aprendendo Mais reúne 750 alfabetizandos em 30 turmas — 
Foto: Cedida

O Aprendendo Mais é um programa da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Natal (SME) criado com o objetivo de promover a alfabetização de jovens, adultos e idosos na perspectiva da pedagogia freiriana. Ao todo, 750 pessoas participam desta primeira etapa do projeto, que por enquanto está paralisada em função do coronavírus.

Os alfabetizandos foram divididos em 30 turmas, que estão concentradas em sete polos espalhados pelas quatro regiões de Natal. As divisões foram feitas de acordo com a distribuição da população na cidade. Antes do isolamento social do coronavírus, as aulas aconteciam das 19h às 21h30 em escolas da rede pública e espaços comunitários.

O treinamento dos professores durou cerca de três meses. As aulas tiveram início em outubro do ano passado. Após a conclusão do curso, os novos alfabetizados serão preparados para o mercado de trabalho com o apoio de servidores da Secretaria de Assistência Social (Semtas).

O Rio Grande do Norte tem cerca de 357 mil analfabetos - aproximadamente 12,6% da população. Em Natal, o número de pessoas com mais de 15 anos que não saber ler e escrever é de 39 mil. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao ano de 2018.

ANGICOS  NATAL  RIO GRANDE DO NORTE

Por Bruno Vital, G1 RN

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