Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília
27 de JUNHO 2022 - Como avaliar uma sociedade que condena o aborto, mas se não se mobiliza contra os estupros, mesmo que a vítima seja uma criança? Como mudar uma sociedade onde até aula sobre educação sexual nas escolas vira polêmica e da qual não se ouvem gritos de ‘basta’ diante de números atordoantes, como o de que cerca de cem crianças são estupradas por dia no Brasil, segundo dados colhidos de órgãos e estudos pelo Instituto Liberta.
A diretora-presidente da instituição, Luciana Temer, professora de direito da PUC/SP, disse à RFI que o abuso contra crianças é um “não-problema”no Brasil, pois em sua grande maioria o algoz está dentro de casa, e o crime é tido como uma situação doméstica e não como um drama coletivo.
O caso da menina de Santa Catarina que foi estuprada por um parente adolescente e engravidou aos dez anos trouxe à tona mais uma vez essa discussão e mostrou a urgência de mudar esse entendimento.
“Não é um caso isolado”
“Este não é um caso isolado. Nós temos mais de quatro meninas de menos de 13 anos estupradas por hora no Brasil. Como é que a gente não está falando disso o tempo inteiro? Por que a gente não pega este caso e eleva essa discussão para entender essa série de violências vividas por essa menina. Desde a violência terrível do estupro e depois da retirada da família, quando na verdade quem tinha que ser retirado é o agressor ou o suspeito. E depois a proibição, de alguma forma o cerceamento de um direito legal que é o aborto nesses casos.”
Para o assistente social, doutor em sociologia e professor emérito da UnB, Vicente Faleiros existe um desafio cultural e estrutural para se vencer no caso dos abusos contra menores. “Há uma cultura machista entre nós e há um poder do adulto sobre a criança. No Brasil, nós temos o Estatuto da Criança e do Adolescente, nós temos canais de denúncia como o disque 100, temos delegacias especializadas em receber essas denúncias. Mas isso não é suficiente. É preciso uma mudança na cultura da sociedade”.
A diretora do Instituto Liberta acredita que a falta de engajamento da sociedade nessa bandeira dá margens para que instituições analisem o caso fora da lei. “Como é que o sistema de justiça, como é que uma juíza e uma promotora negam esse direito? Negam porque o Brasil não fala sobre essa questão. E as pessoas se sentem no direito de tratar da forma que quiserem. Porque o que aconteceu com essa menina nós sabemos porque foi filmado, mas é uma coisa cotidiana. Quantas meninas não são submetidas a esse tipo de violência no Brasil, essa violência institucional? São muitas e tenho certeza absoluta disso.”
Ela lembrou o caso de outra menina estuprada pelo tio e que engravidou aos dez anos. Moradora do Espírito Santo, a criança só conseguiu interromper a gravidez em outro estado e sob protestos porque dados dela vazaram na internet e grupos anti-abortos fizeram manifestação na frente do hospital. Não bastasse o trauma e o sofrimento pela violência sofrida, a exposição foi tamanha que a família teve de entrar no serviço de proteção do governo federal.
Depois da polêmica, a menina de Santa Catarina fez o aborto no mesmo hospital que lhe havia negado atendimento.
“Conservadorismo hipócrita”
“Há uma contradição. Uma sociedade que é contra o aborto, mas não tem a mesma firmeza na defesa dos direitos da criança e do adolescente. A juíza que determinou a proibição do aborto de numa criança de 11 anos vítima de um estupro se sentiu mais pressionada pela sociedade e por esses valores morais do que pela própria lei. E o absurdo de que uma criança ter sido violentada e isso não ter sido denunciado, repudiado por ela. É um conservadorismo hipócrita que domina nossa sociedade”, afirmou Vicente Faleiros à RFI.
Muitas crianças abusadas só vão perceber a crueldade a quem foram submetidas quando crescem e passam a entender o que é uma relação sexual, por isso falar do assunto é tão importante. Em Campo Limpo de Goiás a prefeitura, numa parceria com uma ONG que atua nessa área, realizou palestras nas escolas do município este ano. Ao ouvirem a descrição do que é o estupro, dez crianças relataram durante o evento que eram vítimas do crime cometido por parentes ou conhecidos.
“Nós acreditamos que a política de estratégica de prevenção está na escola. A escola precisa falar de prevenção à violência e sobre sexualidade saudável. E em outra frente é preciso preparar todos os profissionais para lidarem com essa questão. Porque não é só o sistema de justiça Os médicos não estão preparados, os advogados não estão preparados, os professores não estão preparados porque nas faculdades de medicina, pedagogia e direito, não se fala de violência sexual. Então é o seguinte: a gente tem que colocar essa questão na pauta da sociedade”, defende Luciana Temer.
Consequências são diferentes segundo a classe social
Luciana destaca que o estupro atinge crianças de famílias pobres e ricas, porém há diferença nas consequências. “Esta violência acontece em todos as classes sociais, com consequências diferentes. Essa menina de Santa Catarina foi tentar um aborto legal, que ela tem direito. Uma menina com alto poder aquisitivo, a mãe não iria por esses meios e a menina faria o aborto de qualquer maneira. Então acho que as consequências são diferentes.”
Vicente Faleiros diz que em muitas situações a criança não tem voz e o medo, o machismo, a pressão perduram na família. “Há um medo de denunciar. O medo de o agressor se tornar ainda mais agressor contra quem denuncia. Há casos em que há uma certa aceitação do machismo. Mas há também mulheres, mães, avós que denunciam e enfrentam esse machismo e agressão de muitos homens. Dupla violência, uma contra a criança e outra contra quem denuncia. Isso precisa ser mostrado para a sociedade”, diz o professor da UnB.
O instituto Liberta tem um projeto para que maiores de 18 anos que foram vítimas de abusos na infância ou adolescência gravam frases como: “Eu fui vítima e agora você sabe”.
Fonte: Jornal O Mossoroense.
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