Quando o autismo é o começo, e não o fim

Figura ilustrativa.


Observação cuidadosa de indícios de retraimento no bebê e encaminhamento para avaliação com psicanalista oferecem chances para a retomada do desenvolvimento


Não tivesse em sua história as marcas do autismo na infância, o relato de Ana, uma jovem de 19 anos, não seria diferente da experiência emocional de outras de sua idade. “Viu como eu fico? Ainda hoje me faltam as palavras quando quero falar. Quando o medo e o desejo ficam muito fortes, as coisas se complicam dentro de mim!”

Ter consciência de sua reação e de seu estado emocional é fruto de um longo processo de desenvolvimento mental adquirido com seu tratamento psicanalítico. Crianças com autismo não possuem a noção de sua própria existência. Costumam apegar-se a objetos ou manterem-se fixadas em apenas um tipo de interesse. Seu olhar pode ser vazio, distante ou fixo. O maior sinal de alerta se dá quando não desenvolvem a linguagem.

Os primeiros sinais de retraimento frequentemente já se encontram presentes no bebê. Ou na criança, que parecia ir bem, regride ou paralisa seu desenvolvimento.

O bebê nasce com um potencial natural de ir ao encontro de outro ser humano, para explorá-lo e conhecê-lo. Este potencial difere em cada bebê, uns são mais ativos, outros mais apáticos. Mas existem bebês que não conseguem ficar satisfeitos e se tranquilizar com nada do que é oferecido. A curiosidade pelo olhar e a voz da mãe e do pai são substituídas por um refúgio em si mesmo. No autismo, este potencial de relacionamento se fixa em sensações corporais, objetos ou coisas em movimento.

As observações do desenvolvimento emocional do bebê no primeiro ano de vida são muito importantes. Perceber alterações no comportamento neste período pode ser muito difícil. Os pais, envolvidos com as expectativas naturais que acompanham o nascimento de um filho, podem não conseguir notar. Alguns percebem as dificuldades de seus bebês, mas são desencorajados por ser uma constatação assustadora. A desinformação da importância desta etapa crucial do desenvolvimento emocional entre os profissionais que lidam diretamente com bebês ainda é muito grande. Assim, o “cada criança tem seu tempo” se banaliza e o que pode ser tratado o quanto antes, se perde.

No entanto, uma observação cuidadosa de indícios de retraimento no bebê e o encaminhamento para a avaliação com um psicanalista oferecem chances para a retomada do desenvolvimento.

Durante o tratamento psicanalítico, o comportamento da criança como a ponta do iceberg será naturalmente modificado. É na base do iceberg que trabalhamos. É no encontro emocional entre duas pessoas que se forma a base da integração das funções cognitivas.

A técnica psicanalítica se dá com encontros frequentes com o analista. É através deste novo vínculo que as dificuldades do contato são tratadas e restabelecidas. Neste percurso, alguns sinais que podem parecer uma piora fazem parte de uma retomada do desenvolvimento e ganho de consciência. A metodologia do trabalho psicanalítico tem como foco a expansão mental.

Ainda que o diagnóstico identifique estas crianças, cada uma delas possui um mundo interno com diferentes possibilidades de evolução. No tratamento psicanalítico, as semelhanças ganham diferenças.

Ana, que ao início não falava, não olhava, recolhendo-se ao balanço do próprio corpo, hoje pode frequentar a faculdade, enxergando o que sente quando está junto de seus colegas. Nos seus 19 anos, o autismo foi apenas o começo. Ainda é muito jovem e, como ela mesma reconhece, cheia de desejos e medos como qualquer um de nós.


Marisa Helena Leite Monteiro é diretora científica da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro


Retirado do O Globo

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